domingo, outubro 17, 2010

REI PELE




Ex-jogadores ligados à Dupla revelam histórias marcantes sobre Pelé

Rei do futebol completa 70 anos no próximo sábado



A uma semana dos 70 anos do maior ídolo de todos os tempos do futebol, alguns dos ex-jogadores ligados à dupla Gre-Nal que conviveram com o Rei no lendário time do Santos e na Seleção Brasileira revelam as histórias mais bizarras dentro e fora de campo.

O juiz expulsa e a torcida manda voltar


No final da gravação do documentário sobre Pelé, os entrevistados foram convidados a conceder depoimento derradeiro sobre o personagem principal. O ex-zagueiro Oberdan (foto) resumiu o sentimento numa frase curta:

– Para mim, Pelé é eterno.

Gravou isso e foi para casa. Durante a exibição de pré-estreia, um dos produtores o procurou a um canto no cinema e agradeceu:

– Obrigado pela ideia do nome do filme.

Assim nasceu o título Pelé Eterno. Oberdan acertou em cheio na definição do seu antigo companheiro porque passara seus primeiros 10 anos de vida profissional em convivência com o Santos de Pelé. Tornara-se o quarto jogador que mais atuara como zagueiro na história do clube – ou seja, dividia tanto a rotina de conquistas do time mais badalado do mundo quanto suas horas mais bizarras.

Por exemplo. Oberdan era um dos 22 mortais em campo quando o Santos enfrentou a seleção olímpica da Colômbia, em Bogotá. O presidente da República, o ministério, o clero, o judiciário em peso tomaram as tribunas. Excedentes de autoridades alojaram-se em cadeiras improvisadas à beira do gramado e formaram um cerco ao gramado. Todos queriam ver Pelé. Seria uma noite memorável não fosse a desmesura do árbitro Guillermo “Chato” Velázquez. O juiz anulou um gol em lance legítimo do atacante Lima, que foi protestar. O problema é que Chato, um irritadiço lutador de boxe, não aceitou a queixa do brasileiro e o esmurrou de leve, e o bolo de jogadores se formou.

Do nada, Chato virou-se para um dos tantos negros com a camiseta branca do Santos e expulsou um. Não se deu conta de que o punido tinha o 10 às costas. Ao ver Pelé sair de campo, a turma comportada e bem asseada da borda do campo perdeu a compostura. Atirou cadeiras e almofadas. A polícia aos magotes tentou cercar o árbitro e controlar o alambrado que a torcida ameaçava colocar abaixo, aos gritos:

– Pelé, Pelé, Pelé...

Quem o juiz queria expulsar era o volante Mengálvio, outro gaúcho revelado no Aimoré, de São Leopoldo, antes de ir para o Santos:

– O Pelé era assim: nos fazia passar pelas situações mais curiosas.

Uma ordem desceu das tribunas, seguiu pelo túnel e chegou ao ouvido de Chato.

– Que saia Velázquez e volte Pelé.

Colocaram um auxiliar a apitar. No vestiário, de banho tomado, Pelé estranhou quando Oberdan entrou esbaforido, correndo:

– Eles estão chamando. Você tem de voltar!

Pelé retornou ao jogo, e Chato foi embora. Mas deu o troco. Fez queixa dos brasileiros e Oberdan e Pepe passaram a madrugada explicando supostas agressões ao juiz. O juiz expulsa e a torcida manda o Rei voltar.


Pelé jogou e a guerra parou

Gilmar, Pelé, Edu, Coutinho, Zito, Oberdan, ninguém acreditou no que viu assim que deixou o aeroporto de Brazzaville, no antigo Congo Belga. Havia mais tanques do que carros nas ruas. Só o empresário da excursão à África se mostrava confiante. Até Pelé, sempre cordato, irritou-se com os jogos em meio a uma guerra.

Assim o Santos jogou quatro amistosos no Congo quando surgiu o convite para uma quinta apresentação. O problema era viajar a uma zona ainda mais conflagrada. O agente apressou-se a justificar o amistoso seguinte:

– Fiquem calmos, eles param a guerra: vão querer ver Pelé.

Todos se surpreenderam com a reação de Pelé, que chamou o empresário de louco. E Oberdan pensou: o negrão está nervoso e ainda assim marcou cinco gols em quatro jogos. E a delegação partiu para Lagos, na Nigéria. A leste do país, corria a guerra civil de Biafra, havia temor de atentados. O governo nigeriano garantiu a proteção da polícia ao Santos e mandou o exército cercar a cidade.

Cartazes brancos espalhados pela capital ao mesmo tempo sugeriam trégua e convidavam para a grande exibição de Pelé. Nem um tiro foi disparado, nem um incidente de rua registrado. Pelé fez dois gols no empate em 2 a 2, e Oberdan entrou no lugar de Rildo no segundo tempo e voltou a pensar: o negrão queria acabar logo com isso, por isso marcou dois gols.

Assim que o Santos levantou voo, a guerra foi retomada. Oberdan jogou oito anos com Pelé. Depois, esteve no Grêmio em 77 e 78. Pelé jogou e a guerra parou.


O mar e o gás de Trinidad

Era para ser apenas uma viagem rapidinha ao Caribe. O destino, a paradisíaca Trinidad e Tobago, o mar verde de ondas calmas e coqueirais de coquinhos amarelos. Uma pausa à rotina de jogos do Campeonato Brasileiro, apesar do bate e volta no meio da semana. De novo a delegação perdeu o encanto ao deixar o aeroporto. O exército estava nas ruas em combate numa guerra civil que só então souberam já havia derrubado centenas de pessoas.

– Não acredito que nos trouxeram para um lugar desses – exclamou o zagueiro Vicente.

A tensão diante de tantos milicianos armados perdurou até a hora do jogo. Enquanto o time se fardava, alguém jogou uma bomba de gás lacrimogêneo no vestiário. Bateu o pavor e alguns militares cercaram a delegação para protegê-los de novos atentados. Pelé, Vicente, Pepe, Edu, Oberdan foram a campo com uma toalha molhada ao rosto.

Pelé marcou o único gol da vitória sobre a seleção do país – o que reforça a tese de Oberdan sobre o interesse dele em liquidar o jogo e voltar a salvo para casa o mais rápido possível. Mas desta vez não foi tão fácil. Feito o gol aos 43 minutos do primeiro tempo, a torcida invadiu o gramado. Colocaram Pelé sobre os ombros, e o jogo se encerrou. Bastava-lhes ver um gol de Pelé. O resto seria festa. E o sequestraram para fora do estádio em um cortejo alegre em direção ao centro da cidade comemorando a glória de presenciar um gol do brasileiro mágico – tudo acompanhado de perto pelo exército.

Carregado sem ação nos ombros da horda, Pelé gesticulava e agradecia, mas seu rosto era de puro medo. Só foi resgatado minutos depois. A delegação antecipou o voo de volta. Aquele dia de folga no mar do Caribe ficou para uma outra excursão.


O capitão Vicente chora de saudade

Aproximava-se o dia 2 de outubro de 1974, a quarta-feira da despedida de Pelé no Santos. O país inteiro comentava a respeito, campanhas clamavam pelo “fica” e uma grande excitação descia sobre a cidade de Santos, à espera da exibição derradeira, na Vila Belmiro, contra a Ponte Preta.

Entre os jogadores, porém, poucos comentavam o assunto. Uma tensão os inibiu e se arrastou assim até a hora do jogo no vestiário. A preleção do técnico Elba de Pádua Lima, o Tim, foi sem delonga, lembrou da solenidade de despedida, agradeceu pela existência de Pelé entre eles e colocou a palavra ao grupo. Ninguém falou.

O zagueiro Vicente, capitão do time, em respeito ao clima do ambiente, também recolheu-se ao silêncio. Pelé estava concentrado. Um pigarro aqui e ali cortava a dureza do momento e os jogadores subiram os primeiros três degraus do corredor de acesso e depois mais cinco lances e já não se ouvia o barulho das travas das chuteiras porque o som externo do estádio se infiltrava.

Vicente foi o primeiro a aparecer. Tinha um cabelão de roqueiro inglês e um bigode da espessura de um dedo. Bem atrás Pelé foi parado pelas rádios e quase não conseguiu avançar ao campo. Havia 250 jornalistas no estádio, mais cinegrafistas, fotógrafos e grande parte disso dentro do gramado.

Jogo iniciado, Pelé revelou-se cansado. Vinha de lesão e, ainda assim, acertou uma cabeçada que o goleiro Carlos, aos 18 anos, defendeu com dificuldade. Minutos depois, passaram-lhe a bola no centro do círculo do gramado e ele a pegou com a mão.

Ninguém entendeu aquilo. Vicente perguntou a alguém:

– O que ele vai fazer?

Não havia combinação de quando iria parar o jogo. Não falavam sobre isso. E Pelé ajoelhou-se sobre a marca do centro do gramado, ergueu os braços e exclamou:

– Obrigado, Deus.

Ainda de joelho, fez uma volta sobre si contemplando todo o estádio onde jogou desde o início. O árbitro Emídio Marques Mesquita entrou no clima. Vicente e os colegas tentaram abraçá-lo, mas o gramado foi tomado pela imprensa e curiosos e Pelé fez a volta olímpica acenando a própria camiseta com listras em preto e branco.

Gilson substituiu Pelé, que seguiu em carro dos Bombeiros pela cidade em cortejo de milhares de fãs aos gritos de Pelé, Pelé, Pelé – quase igual ao episódio de Trinidad e Tobago, com mais segurança, é claro. Em 18 anos de Santos, marcou 1.088 gols em 1.114 partidas, média de 0,97, praticamente um gol por jogo. Conquistou 10 Paulistas, quatro torneios Rio/São Paulo, cinco Taças Brasil, um Robertão, uma Recopa Mundial, duas Libertadores e dois Mundiais Interclubes.

Coube a um gaúcho de Bagé ser o capitão do Santos neste momento derradeiro. O zagueiro Vicente imperava no Estádio da Estrela D’Alva, do Guarany, até ser recomendado à Vila por Calvet, considerado um dos melhores zagueiros de todos os tempos da história do Santos e do Grêmio.

Vicente hoje mora na zona sul de Porto Alegre. Mantém numa caixa de papelão fotos de quando chegou à Vila em 1971 e saiu em 1976. A maioria é dele com Pelé.

– Vocês sentiram um vazio no vestiário no jogo seguinte ao da despedida?

– Ficou, sim – disse, a voz embargada pelo choro, o cabelo grisalho pelos 65 anos.


O Rei que comia com as mãos

O centroavante Alcindo esteve com Pelé na Copa de 66. Mais tarde, depois do Grêmio, entre 1971 e 1973, reecontraram-se na Vila. Frequentaram a barbearia do Didi, na frente do estádio. Alcindo viu Pelé imortalizar o corte de cabelo estilo “bibico”, como um gorro de soldado.

Em dias de folga, Pelé buscava Alcindo em casa e o levava para pescar em seu sítio em São Vicente. Ia pegá-lo de Mercedes, às vezes com motorista. Sempre havia um Mercedes na vida de Pelé. O dono da revendedora de São Paulo prometeu provê-lo com um carro por anos a fio.

Mas no sítio pescavam carpas num açude e, durante as refeições, aconteciam as cenas mais curiosas.

Pelé servia-se de montinhos de arroz, feijão, peixe, salada e comia um por um com as mãos.

– Desculpe, gaúcho, estamos à vontade, não é? – justificava-se.

A história do sítio é mais uma prova da sorte de Pelé. A área pertencia ao massagista Macedinho, do Santos. Mal de dinheiro, o funcionário tentou vender a terra e não encontrou comprador. Sensibilizado com o problema do amigo, Pelé foi conferir o local e gostou particularmente de uma cascata que dava num açude.

– Este sítio é meu – disse ele a Alcindo, que estava junto.

Pagou à vista e, tempos depois, estranhou a pureza da água da cascata e mandou analisar.

Era fonte de água mineral.

Macedinho não sabia disso e perdeu dinheiro ao vender o sítio.

Pelé mandou engarrafar a água e ficou mais rico.


Dormindo, Pelé fazia polichinelos

O goleiro Manga não esquece as vezes em que saiu atrás de seu sapato e não o encontrou. Se alguém o havia escondido, só podia ser uma pessoa, o mais astuto brincalhão do grupo. Foi assim na Copa da Inglaterra.

– Ele (Pelé) mantinha todos em alerta, colocava apelidos e jogava o astral para cima – depõe Manga.

Senão pelas brincadeiras, pelas manias. Oberdan reconstitui uma cena:

– Vi Pelé no vestiário colocando o fardamento. Esticava-se num banco de madeira, pegava uma toalha branca e fazia de travesseiro. Fechava os olhos, concentrava-se e adormecia.

Oberdan pedia silêncio, e nem precisava. Todos respeitavam. O homem se preparava para ser Pelé.

Vinha a preleção e o melhor jogador do mundo ouvia o técnico com atenção. Só opinava quando solicitado. O estado era de relaxamento total. Mas nem sempre era assim. Mengálvio levou um susto dormindo no quarto com Pelé. No meio da madrugada, foi acordado com gritos do companheiro, que chutava a coberta sobre a cama:

– Solta a bola, solta a bola...

Ex-ponteiro-direito do antigo Força e Luz, Dorval também foi surpreendido pelo sonambulismo do craque: certa noite acordou assustado com Pelé se debatendo. Fazia polichinelos na cama.

Nas viagens aéreas, porém, nada o abalava. Dorval conviveu com o período de explosão do Rei, de 1957 até meados dos anos 60. Numa viagem à Europa, a turbulência revirava o avião e os jogadores do Santos começaram a rezar. Num canto, Pelé dormia. Nada o abalava.

– Se o negrão está dormindo, não vai acontecer nada – dizia Dorval.

Era isso que o zagueirão Airton Ferreira da Silva temia quando recebeu o convite para jogar no Santos em 1960. Odiava aviões e, por isso, aceitou o empréstimo apenas por três meses. Disputaria apenas o torneio Rio-São Paulo.

Incomodava-se com o fato de que todas as atenções do mundo voltavam-se para só uma pessoa. Os demais se liberavam. Para quem havia sido astro do Grêmio, Airton sentia-se diminuído.

Melindrou-se mais numa partida. Airton foi à área adversária cabecear, e Pelé o conteve:

– Gaúcho, deixa que aqui a gente resolve. Cuida da zaga, sim.

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